Quando Bruno de Sá, artista que conheço desde sua formação ainda aqui em São Paulo, me provocou para dirigir este espetáculo que coroaria a finalização de três anos de uma espécie de residência artística junto ao Theatro São Pedro e sua academia de ópera, eu imediatamente propus a ideia de um espetáculo de colagem ou, como se diz desde o século XVII, um pasticcio.
Na busca por um tema que pudesse nortear este trabalho me lembrei da primeira vez em que ouvi a voz de Bruno de Sá, um raríssimo sopranista, em ocasião de uma prova de fim de ano dos alunos de seu professor, Francisco Campos[1]. A experiência de deleite e assombro me fez escrever a seguinte nota: “o grão da voz!”. A partir desta lembrança este espetáculo só poderia ter um tema: a própria voz.
O conceito de “grão da voz”, cunhado por Roland Barthes, surge então como inspiração mas também como termo a ser subvertido. A voz-grão, que carrega o corpo e o desejo do cantor, seja Bruno, Débora, Willian, Laleska ou Ariel, encontra-se em um limiar que transcende a técnica pura para habitar o território do prazer sensorial. O grão, segundo Barthes, é aquilo que é inefável e que se situa além da semântica e da cultura. O momento em que o som se faz matéria e o canto se transforma em um eco primitivo, quase mítico. Na nossa subversão do termo barthiano, o grão da voz, é também o grão, a semente, a origem da própria ópera; a matéria primordial deste gênero que ao longo de todas as suas revoluções estéticas e formais mantiveram nela – na voz – seu ponto focal.
Para mergulhar nesse universo de múltiplas camadas, convidei Sofia Boito. Juntas, atravessamos reflexões de Mladen Dolar a Paul Zumthor, que nos guiaram em uma busca pela essência filosófica, mítica e poética da voz. Nos aproximamos de mitologias, da grega a algumas indígenas, e diversas outras fontes literárias. Tudo isso tecendo uma colcha de retalhos que – assim como o próprio repertório que escolhi em diálogo com Bruno e o maestro André dos Santos – reflete a natureza fragmentária, mas poeticamente coesa, deste espetáculo.
O repertório escolhido, composto em grande parte por peças conhecidas, em parte me parecia merecer ser ouvido em nova roupagem. Por isso, convidei Juliana Ripke para rearranjar algumas das obras, promovendo um diálogo entre séculos e compositores, entre tempos passados e o presente. Quando nosso diretor de arte e cenógrafo Renato Bolelli Rebouças propôs que assumíssemos a colagem, as justaposições, o reuso como linguagem estética, a sonoridade e a estrutura dramatúrgica ganhou forma visual, intensificada pelas contribuições de artistas como Alma Negrot , que estreia nos palcos líricos, a iluminadora Aline Santini e a videomaker Vic von Poser, cujas presenças foram essenciais para a criação da atmosfera visual.
Dessa forma, nasce a voz, e dela, a ópera e o sacerdócio daqueles que se dedicam à arte do canto. Pequenos capítulos foram se revelando ao longo do processo que ganharia ainda a coreografia, elaborada por Roberto Alencar: a dança como extensão do canto. O corpo se transforma em voz, e a voz, em gesto. A primavera está aqui, ela floresce em cada um dos intérpretes, dos cantores da academia até os bailarinos Alma Luz Adélia e Roberto Alencar. Esta primavera, esse grão da voz, ninguém vai nos tirar.
[1] Que aparece neste espetáculo numa participação afetiva.
Orquestra do Theatro São Pedro
Orquestra Jovem do Theatro São Pedro
Academia de Ópera do Theatro São Pedro
Ligiana Costa, criação e direção cênica
André Dos Santos, direção musical
Bruno de Sá, sopranista
Débora Neves, soprano
Laleska Terzetti, mezzo soprano
Ariel Bernardi, baritonista
Wilian Manoel, tenor
Roberto Alencar, coreografia e bailarino
Alma Luz Adélia, bailarina
Renato Bolelli Rebouças, direção de arte e cenografia
Sofia Boito, dramaturgia e assistência de direção
Alma Negrot, figurino e visagismo
Aline Santini, desenho de luz
Vic von Poser, videografia
Roberto Alencar, coreografia e direção de movimento
Felipe Venancio, diretor de palco
Juliana Ripke, arranjos
Paulo Galvão, adaptações orquestrais
Rick Nagash, assistente de direção de arte
Anísio Serafim, assistente de cenografia
Gabi Ciancio, assistente de iluminação
Marilia Campos, contrarregra
Tiago Moro, maquinista
Bete Roque, camareira
Parceria Institucional: Sustenidos Organização Social de Cultura – acervo do Theatro Municipal de São Paulo
O cenário deste espetáculo foi concebido por Renato Bolelli Rebouças a partir da sobreposição e releitura de peças de cenários, telões, maquinarias e objetos do acervo do Theatro São Pedro e do Theatro Municipal de São Paulo. A todos e todas criadoras que ao longo dos anos se dedicaram à ópera em São Paulo, nosso muito obrigado.
Os figurinos do Grão da Voz foram criados a partir dos mesmos princípios por Alma Negrot com assistência de Rick Nagash. Além do reuso de figurinos que compem do acervo do Theatro São Pedro, usamos itens dos figurinos criados por Simone Mina e Carol Bertier para ‘O amor das três laranjas’ no Theatro Municipal de São Paulo.
Este trabalho põe em prática os princípios da ecocenografia e defende o reuso e sustentabilidade nas artes cênicas como meta estética, política e ecológica.
Casa Udjain
Pelé e a equipe da central técnica do TMSP
Juliano Bittencourt
Carlos Papá e Cristine Takuá
Julio de Paula
Francisco Campos
Emilio Sala
Toda equipe do Theatro São Pedro e Santa Marcelina
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