De: Irineu Franco Perpetuo
Em meados do século XIX, Paris começou a se inventar como o paradigma ocidental de cidade moderna. Empossado prefeito em 1853, o Barão Haussmann (1809-1891) rompia com os resquícios de urbanização medieval e abria bulevares e avenidas, facilitando a circulação de pessoas e veículos e, assim, ensejando um ritmo de vida fervilhante. Se, na literatura, o novo cotidiano parisiense encontraria sua melhor tradução na poesia de Charles Baudelaire (1821-1867), sua crônica musical era cantada em um novo gênero que, assim como tudo que acontecia na Paris daquela época, logo se tornaria moda em todo o planeta: a opereta.
Diálogos falados, temas leves, música ligeira, com ênfase em melodias que grudam no ouvido e ritmos contagiantes de dança: precursora do musical dos dias de hoje, a opereta surgiu como um contraponto à suntuosidade das megaproduções da Ópera de Paris, bem como à complexidade do drama musical wagneriano.
Sua agilidade em refletir e satirizar os temas do dia-a-dia logo a tornaram uma forma atraente para compositores de diversos países. Aqui no Brasil, seus ecos se fizeram sentir em Chiquinha Gonzaga (1847-1935), que, devido à sua rica produção de formas de teatro musical aparentadas à opereta francesa, recebeu a alcunha de “Offenbach de saias”.
Pois, se a opereta teve um pai, foi o compositor de origem judaica, nascido na Alemanha, porém francês em tudo, chamado Jacques Offenbach (1819-1890). Natural de Colônia, e radicado em Paris desde a adolescência, Offenbach converteu-se ao catolicismo e destacou-se como virtuose do violoncelo, antes que a rivalidade entre França e Inglaterra lhe desse a chance de que a encenação de suas obras para o palco finalmente deslanchasse.
A virada foi em 1855. Londres fizera uma exposição internacional em 1851, e Paris, capital do Segundo Império de Napoleão III, não queria ficar para trás. Calcula-se que mais de cinco milhões de pessoas visitaram a Exposição Universal parisiense, entre maio e novembro deste ano. Offenbach, espertamente, alugou um pequeno teatro de madeira de 300 lugares chamado Salle Lazare, bem perto de onde os eventos ocorriam, e lá fundou seu Théâtre des Bouffes-Parisiens, capturando a imaginação do público com suas graciosas operetas (ao longo de sua carreira, ele escreveria nada menos que 98 obras do gênero).
O sucesso de Offenbach sobreviveu ao fim da Exposição. Veio o inverno, e a acanhada Salle Lazare não podia oferecer conforto em condições climáticas mais rigorosas. Assim, a companhia buscou um teatro para o frio, de 900 lugares, localizado na Passage Choiseul. As atividades da sede de inverno dos Bouffes-Parisiens foram inauguradas em 29 de dezembro de 1855, com um espetáculo que brincava com o gosto pelo exótico, que ainda estava fresco nas mentes dos parisienses após conhecerem produtos industriais, agrícolas e artísticos de 34 países na Exposição Industrial: Ba-ta-clan.
Dada a importância do elemento teatral, na opereta o libretista era uma figura ainda mais estratégica do que na ópera. Em Ba-ta-clan (palavra que, em francês, significa parafernália), Offenbach trabalhou com aquele que foi seu principal parceiro criativo: Ludovic Halévy (1834-1908), também de origem judaica, e sobrinho de Fromental Halévy (1799-1862), compositor, dentre outras, da ópera La Juive (1836). A quatro mãos com Henri Meilhac (1830-1897), foi autor do libreto da mais popular partitura de Bizet, Carmen; para Offenbach, escreveria sucessos como La Belle Hélène (com Meilhac) e Orphée aux Enfers (com Hector Crémieux).
Definida pelos autores como chinoiserie musicale, Ba-ta-clan joga com estereótipos da China para falar da França de seu tempo. O “chinês” que se fala na opereta é uma mera sucessão de fonemas alusivos – e a língua italiana é igualmente alvo de zombaria. Uma lei de 1807 – portanto, dos tempos de Bonaparte, tio de Napoleão III – limitava o número de personagens que podiam aparecer no palco. De qualquer forma, todos eles, não por acaso, revelam ser franceses.
Há alusões ao Bulevar dos Italianos, à Maison Dorée (célebre restaurante que ficava neste logradouro), ao baile da Ópera, às polcas que se dançavam ao ar livre no Jardim Mabille. Não faltam piadas musicais, culminando com a sátira à grandiosidade das óperas de Giacomo Meyerbeer (1791-1864) – cuja música de Os Huguenotes chega a ser citada – e brincadeiras internas, como alusões a La Juive (como foi dito, do tio do libretista) e à opereta Les Deux Aveugles (Os Dois Cegos), sucesso de Offenbach em julho do mesmo ano, na Salle Lacaze.
Ba-ta-clan logo fez carreira internacional; como Tschin-Tschin, foi encenada no Caltheater, em Viena, em 1860, e chegou a Londres em 1865, com o nome de Ching Chow Hi. Em 1864, em homenagem à opereta, foi inaugurado em Paris o Bataclan, que se tornou uma das principais casas de espetáculos da capital francesa. No século XX, alguns artistas icônicos do pop gravaram álbuns por lá, como Lou Reed, Jane Birkin, Zazie, Metallica, Sting e Prince.
A casa serviu modelo para o Bataclan de Ilhéus, na Bahia, que floresceu nas décadas de 1920 e 1930, e foi imortalizado na literatura de Jorge Amado. Em 2015, o estabelecimento parisiense ganhou as manchetes internacionais por um evento terrível: um atentado cometido pelo Estado Islâmico. Após a comoção mundial, o estabelecimento se reergueu, e segue com a vocação inspirada pela opereta de Offenbach: um local de celebração da música e da alegria de viver.
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