Por Leonardo Martinelli
No mundo de hoje, onde diferentes povos e nações são intensamente influenciados por elementos da cultura anglo-americana (tais como o cinema, seriados de TV, literatura, o pop e o rock’n roll, por exemplo), e como consequência, um mundo que tem o inglês como uma espécie de idioma universal, pode parecer estranho falarmos de uma Inglaterra fascinada pela música italiana, pela sonoridade melodiosa de seu idioma e que tinha como verdadeiro ídolos cantoras e cantores exportados a peso de ouro de diversos pontos da Península Itálica.
A bem da verdade, não era apenas a Inglaterra que estava sob o jugo do “imperialismo italiano” que dominou a música ocidental entre os séculos XVII e XVIII, pois não havia no Velho Mundo teatro que não fizesse ressoar óperas e árias de uma quantidade enorme de compositores italianos. Apenas a França e a música em torno da corte de Versalhes chegaram a configurar algum tipo de soberania nacional ao estabelecer uma identidade musical própria, mas ainda assim com alcance e influência muito limitados se comparado ao poder da música italiana, ela própria uma espécie de linguagem universal que mesmo compositores nascidos em outros países procuravam aprender e se familiarizar, tal como ocorreu com o alemão Georg Friedrich Händel (1685-1759).
Natural da pequena cidade saxã de Halle an der Saale (no centro-leste da Alemanha), Händel iniciou seus estudos musicais a contragosto do pai, um bem-sucedido cirurgião-barbeiro que tinha para o filho planos para que ele se tornasse advogado. Entretanto, com o passar do tempo, o incomum talento do jovem Georg Friedrich ficou evidente e o pai foi gentilmente incentivado a apoiar a carreira musical do filho próprio pelo Duque de Weissenfels.
A segunda etapa de sua formação musical passou então a ocorrer em Hamburgo, centro urbano mais estruturado e com uma vida musical mais ativa, onde Händel entrou em contato de forma plena com a sonoridade exuberante da música italiana de seu tempo, e onde em 1705 compôs e estreou sua primeira ópera, Almira, toda cantada em italiano. Ciente de que era essa a arte a qual ele deveria se aprimorar e dominar – e que também o norte da Alemanha não era o lugar mais apropriado para realizar isso – em 1707 ele parte rumo ao sul do continente, onde viveu, aprendeu e trabalhou em cortes e teatros de cidades como Roma, Nápoles e Veneza, seja tocando em orquestra, seja compondo óperas no idioma local, com relativo sucesso e boa aceitação, ao menos para um forestiero…
Três anos depois de sua partida, Händel retorna à Alemanha atraído pelo cargo de mestre de capela na corte do Eleitor Georg Ludwig, em Hannover (que anos depois viria se tornar monarca da Inglaterra). Mas assim que assumiu o cargo, ele se licenciou para viajar a Londres, onde oportunidades financeiramente ainda mais atraentes lhe foram apresentadas.
No início do século XVIII, Londres já era um centro urbano sofisticado, que em breve seria o berço da Revolução Industrial e que já abrigava uma classe média relativamente abastada, ansiosa para gastar suas pequenas fortunas com os prazeres antes exclusivos da nobreza.
Sua trajetória em Londres começou com o pé direito, a partir do sucesso obtido com a ópera Rinaldo (1711), valendo-se da grande aceitação que a ópera e, principalmente, cantoras e cantores italianos então gozavam na sociedade inglesa.
Foi em Londres onde o compositor desenvolveu o tino comercial herdado do pai e, além de escrever partituras, Händel passou a atuar como empresário, tendo participado da criação da Royal Academy of Music (então uma entidade particular) e da realização de diversas temporadas líricas e de concertos.
Entretanto, no ano de 1735, as coisas não estavam lá muito bem para os negócios de Händel. Por um lado, havia o verdadeiro frenesi que se seguiu à estreia da The Beggar’s Opera (ou A Ópera do Mendigo) – espetáculo operístico idealizado pelo empresário John Gay, que se vale de um estilo musical mais popularesco com partes cantadas em inglês – que havia abalado a hegemonia da opera seria italiana (gênero que Händel então dominava como poucos) junto ao público londrino. A isso soma-se não apenas a situação de falência da companhia de ópera que participava, mas também o surgimento de uma concorrente, a Ópera da Nobreza, que então tinha como atração principal ninguém menos que o célebre castrado Carlo Maria Broschi, também conhecido por Farinelli (1705-1782).
Ainda assim, nesse ano, o compositor empreende o que na prática seria seu último sucesso com a opera seria, uma narrativa musical baseada numa história do célebre poeta italiano Ludovico Ariosto (1474-1533), Alcina, a partir do libreto de Antonio Fanzaglia.
Em Alcina podemos ouvir um Händel em pleno domínio da opera seria barroca, com um nível de elaboração e artesanato de escritura raros mesmo em outros compositores italianos daquele período. Nesse título, ele reforça os modelos então vigentes no gênero, tal como fez com todas suas óperas. Entretanto, para fazer frente à concorrência quase imbatível de Farinelli, ele lança mão de um recurso um tanto incomum, ao promover como destaque de seu espetáculo operístico não um cantor, mas uma bailarina, a francesa Marie Sallé (1707-1756), também ela sensação nos palcos londrinos. É sua presença na produção de estreia de Alcina a explicação para a quantidade relativamente abundante de danças e música instrumental em meio a um gênero caracterizado pela supremacia das árias vocais.
De volta para o futuro…
A natureza frequentemente histórica, mítica ou mesmo feérica dos enredos de grande maioria das óperas barrocas oferece enorme leque de possibilidades em termos de encenação, uma vez que essas narrativas raramente se rementem a um tempo histórico real ou possível de ser reconstruído em bases históricas confiáveis. E, de fato, desde que títulos desse repertório foram redescobertos e encenados a partir de meados do século passado, diretores de cena de todo mundo encontram na ópera barroca um espaço mais livre e generoso para explorar diferentes aspectos de suas linguagens.
Na versão especialmente elaborada para esta montagem do Theatro São Pedro, o diretor William Pereira tem como proposta trazer ao palco todo o frescor e encantamento inerentes à ópera barroca. “Quero que o público perceba a grande diferença cênica, teatral e musical que existe entre a ópera barroca – mais rara de ser ouvida no Brasil – em relação à ópera do século XIX, mais frequente e aclamada por nosso público”, afirma Pereira.
Nessa montagem, o diretor faz questão de manter o aspecto atemporal inerente à narrativa de Ariosto. Para isso, lança mão de um recurso recorrente em sua linguagem, o “cubo branco” que toma conta do espaço cênico do palco. “Com ele retiro o descritivo e o figurativo, e coloco o próprio enredo no foco da atenção”.
Apesar disso, a montagem não se mantém na linha da neutralidade, e aponta para o futuro ao caracterizar a indumentária de suas personagens inspirando-se no visual característico de filmes de ficção científica, de exploração espacial e das sagas intergalácticas, em especial, Guerra nas Estrelas. É dessa maneira que o diretor reafirma seu compromisso com um universo destituído de verossimilhança, típico das narrativas mitológicas.
Mas se pelo lado cênico essa montagem aponta para o futuro, pelo lado musical ela retoma de maneira criativa e engenhosa uma série de elementos das práticas instrumentais e vocais da primeira metade do século XVIII. Sob a direção musical de Luis Otavio Santos – violinista, regente e um dos principais nomes da interpretação musical historicamente orientada no Brasil (a famosa “música antiga”) – a partitura de Händel passa por um criterioso processo de interpretação, no qual o trabalho vocal evidencia o singular colorido da opera seria barroca e os instrumentos modernos que integram a orquestra sinfônica soam de maneira diferenciada da tradicional, mais em sintonia com a sonoridade elegante desse período.
Entre as diversas adaptações realizadas por Händel para Alcina incluem a inserção de uma personagem inexistente na história, o jovem Oberto, que aporta à ilha em busca de seu pai. Tal inserção justificou-se apenas do ponto de vista musical, uma vez que na estreia Händel utilizou o excepcional talento de um menino-cantor com registro de soprano. As partes destinadas a essa personagem foram suprimidas nessa produção (fato também comum em outras produções e gravações desse título), sem que isso acarrete qualquer prejuízo e demérito para apreciação da música e do espetáculo como um todo.
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