Walter Neiva está com pressa. Às vésperas da estreia de O Elixir do Amor, ele respira ópera. Chega ao Theatro São Pedro lá pelo meio da manhã e só sai ao final dos ensaios, tarde da noite, quando as ruas do bairro de Santa Cecília estão desertas. As horas de sono são poucas e raras – as ideias fervilham. Mal o dia amanhece e ele já está em frente ao computador, em seu refúgio na divisa entre São Paulo e Taboão da Serra (SP), respondendo aos e-mails e se preparando para as infindáveis tarefas de uma produção não tão simples. “Apesar da singeleza, Elixir exige uma atenção especial em muitos pontos. A partitura é muito extensa para o tenor e é preciso trabalhar a expressão dos coralistas, além dos solistas.”
Walter se compara a um equilibrista de circo, que precisa dar conta de todos os pratos na ponta de uma vara. Nada pode sair do prumo: a marcação cênica e interpretação dos cantores, inúmeros detalhes da cenografia, a iluminação, os adereços. Cabe a ele até mesmo pensar que tipo de sapato o coro vai usar, ou que bob de cabelo estava em alta na década de 1940, época em que se passará essa montagem.
Mas desafios não o assustam. Walter, responsável pela concepção e direção cênica de O Elixir do Amor, parece ganhar uma energia a mais – a mesma que lhe tira a paz na hora de dormir. Teve 20 dias para montar Otello, ano passado, na Colômbia. “Quando cheguei o cenário ainda estava sendo construído, mas a equipe era incrível, dos solistas aos produtores, e as coisas simplesmente aconteciam”, conta. A ópera de Gaetano Donizetti marca sua volta, após cinco anos, aos palcos do Theatro São Pedro, pelo qual nutre indisfarçado carinho. Em maio de 2007, Walter dirigiu e assinou a cenografia das óperas La Cambiale di Matrimonio e Il Signor Bruschino, ambas de Rossini, no teatro paulista. “Eu gosto do espaço, da proximidade com a plateia, que permite ver as expressões, o sentimento.” Neste mesmo palco ele também dirigiu Il Barbiere di Siviglia, Don Pasquale, Pedro Malazarte e Salvator Rosa, além de outros recitais líricos.
Walter é um observador. Puxa a cadeira e se debruça sobre a mesa estreita, antiguinha, pintada de vermelho, até então meio perdida no palco. Óculos na ponta do nariz, mãos entrelaçadas, acompanha atento cada gesto e entonação dos solistas durante o ensaio com o maestro Emiliano Patarra, diretor artístico dessa montagem de O Elixir do Amor. Vez ou outra franze o cenho e pontua uma observação. E a cena se repete, uma, duas, três vezes, até que saia perfeita. Diz-se exigente, mas não tirano. “Estou trabalhando com um time dos sonhos, mas a minha postura sempre foi a de transmitir entusiasmo, envolver. Só assim funciona.”
É a primeira vez que Walter monta essa ópera, e confessa o grande prazer. “Sempre quis fazer Elixir. E, bem, tenho uma queda pela comédia”, confessa. Mas há outra história por trás dessa. Uma das árias mais famosas da peça, Una furtiva lacrima, cantada docemente pelo avô, imigrante italiano, era a única que acalmava o diretor, ainda bebê. O menino cresceu, mas foi capaz de reconhecer a canção assim que ouviu a ópera, anos mais tarde.
Conto de fadas. A descoberta do universo lírico deu-se na década de 1970 – e representou uma guinada na vida do jovem Walter, que trabalhava como digitador no Instituto do Coração e estudava arquitetura à noite. Ele se encantou com a arte quando conheceu a coleção Grandes Óperas, da Editora Abril. Ao assistir a montagem de Madame Butterfly, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1974, teve certeza de que era aquilo que queria fazer. Escreveu para o maestro Walter Lourenção, que apresentava um programa de ópera na TV Cultura, perguntando onde poderia estudar ópera. Carta de próprio punho, que naquele tempo não havia e-mail. Surpreso, recebeu resposta. O regente sugeria que ele procurasse Francisco Giacheri, responsável pelas cenografias das óperas no Teatro Municipal de São Paulo, do qual ele viria a tornar-se estagiário e depois assistente.
A carreira como diretor cênico começou em 1989, com Cosi fan Tutte de W. A. Mozart, em Curitiba. Depois, estagiou em Berlim com bolsa de estudo concedida pelo Instituto Goethe e ITI (International Theatre Institute), em mais uma das surpreendentes voltas de sua carreira. “Eu frequentava o Instituto Goethe, que promovia workshops de teatro e música e ali conheci o teatrólogo alemão Henry Thorau. Fiquei amigo do diretor da entidade, Klaus Veter, e vez ou outra ele me pedia para levar convidados alemães para conhecer São Paulo. Numa dessas visitas, a caminho do Embu, paramos em minha casa para mostrar meu jardim – também sou paisagista – e um dos presentes, Renning Riechbieter (fundador e diretor das revistas Theather Heute e Oper Welt) viu sobre a mesa um recorte de revista da encenação de Orfeu e Eurídice feita por Harry Kupfer. Resumindo, Riechbieter era amigo de infância de Kupfer, que acabou me oferecendo um estágio na Komischer Oper e na Ópera de Berlim.” Walter foi o único diretor brasileiro a conseguir o feito.
O diretor correu mundo – dirigiu La Bohème, La Traviata e Otello em Medellin, Colômbia. Don Pasquale foi apresentado na Cracóvia, na Polônia, e depois seguiu viagem por 20 cidades na Holanda e Bélgica.
No Brasil, Walter dirigiu em São Paulo, Ribeirão Preto, São José dos Campos, Rio de Janeiro, Florianópolis, Curitiba, Belo Horizonte, Brasília, Pelotas, Porto Alegre e Manaus, totalizando mais de uma centena de apresentações. É o idealizador do projeto Camargo Guarnieri/Ópera (1907/2007) com encenação da ópera Pedro Malazarte, que inclui a edição da partitura definitiva e um DVD, a primeira gravação mundial da genial parceria com o libretista desta ópera, o também escritor e musicólogo Mario de Andrade. Sua versão para teatro de bonecos da ópera A Flauta Mágica, de W. A. Mozart, foi consagrada com o Prêmio Coca-Cola no Teatro, em 1999.
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