Britten, Shakespeare e Adelburgh
por João Marcos Coelho
A reinauguração do Jubilee Hall, que tinha sido reformado, estava marcada para junho de 1960. A renovada casa do Festival de Aldeburgh, idealizado em 1947 pelo compositor Benjamin Britten (1913-1976) e pelo tenor Peter Pears (1910-1986), marcava a consolidação de um projeto que nasceu com um objetivo simples e direto: fazer música para a pequena comunidade na qual Britten e seu companheiro Pears escolheram viver a maturidade.
Foram nove meses de trabalho intenso, no entanto suficientes para o compositor criar uma nova ópera, tendo Pears como parceiro no libreto. Numa entrevista publicada pelo jornal Observer em 5 de junho de 1960, às vésperas da estreia de Sonho de uma Noite de Verão, Britten esmiuçou todo o processo criativo. “Recebo uma porção de cartas de jovens perguntando como poderiam usar o seu talento, e sempre respondo que devem tentar adaptá-lo àquilo que os cerca. Foi o que aconteceu com Sonho de uma Noite de Verão. A ópera é um exemplo de como as condições locais determinam o que você pode fazer”.
No mundo da ópera, ao contrário da música concertante e instrumental, que tende historicamente a desprender-se daquilo que a rodeia, o vínculo é sempre muito forte com a realidade à sua volta. Um só exemplo, entre centenas: Mozart escolheu melodias populares em Praga para o conjunto tocar no jantar do Comendador, na estreia de Don Giovanni naquela cidade. Mas quando a ópera foi levada a Viena, outras melodias, desta vez populares entre os vienenses, foram executadas.
Voltemos a Britten. Não havia tempo para um libreto original. “portanto lançamos mão de algo que já estava pronto”. A escolha recaiu sobre a comédia de Shakespeare. “Sempre amei Sonho de uma Noite de Verão”, declarou o compositor. Mas, se a transposição fosse integral, “ela teria a mesma duração do Anel wagneriano”, comentou jocosamente.
Os cortes a reduziram à metade. E, anotam todos os musicólogos que se debruçaram sobre o texto shakespeariano e o libreto estabelecido a quatro mãos por Britten-Pears, só existe uma frase apócrifa, acrescentada por eles. “Quando Lysander explica a Hermia por que vai casar-se com ela na casa da tia viúva, a sete léguas de Atenas, ele lhe diz: ‘A severa lei ateniense, que te obriga ao casamento com Demetrius, não nos poderá perseguir lá’ [o acréscimo está em itálico]”, escreve Lauro Machado Coelho (em A Ópera Inglesa). “Ficamos muito atentos”, diz Britten, “para não subestimar nenhuma frase [do texto original da peça], porque é fruto de uma poesia imortal”.
Adoentado – curtiu no inverno uma forte gripe influenza –, o compositor acabou tendo apenas oito meses, a partir de outubro, para trabalhar na música. “Não é a velocidade de um Mozart ou de um Verdi, mas hoje em dia não deixa de ser uma raridade”, constatou orgulhoso na entrevista de 1960.
O musicólogo inglês Julian Budden anota que o compositor “consegue recuperar na música toda a linguagem de Shakespeare, da fantasia poética dos seres sobrenaturais, passando pelos humaníssimos eventos amorosos dos amantes, até as palhaçadas dos artesãos – tudo perfeitamente organizado em um idioma cujas principais influências devem ser procuradas fora de seu solo nativo”. E Budden aponta na sequência que Britten jamais escondeu que Mozart e Verdi eram os pilares de toda a sua criação lírica.
É muito difícil lidar com uma gama de personagens tão ampla. São dezoito, fora os coralistas. Britten estabeleceu alguns parâmetros: para o sobrenatural, vozes brancas: um contratenor para Oberon, um soprano coloratura para Tytania e vozes infantis para as fadas – sem esquecer que Puck, a quem são reservadas apenas as falas, deve ter voz de adolescente. Já os quatro apaixonados recebem uma distribuição vocal espelhada no famoso quarteto de Così fan Tutte, de Mozart: Helena é soprano, e Demetrius barítono; Hermia é mezzo-soprano, e Lysander tenor. Entre os artesãos, Bottom fica num registro que se estende entre o barítono convencional de Demetrius e o baixo profundo de Quince – além, é claro, do esplêndido papel de tenor buffo reservado para Peter Pears como Flute na montagem da estreia, em 1960.
A ambivalência sonho/realidade estende-se naturalmente, como queria Shakespeare, a as paródias, como a engraçadíssima escolha dos nomes dos artesãos que montam a peça Píramo e Tisbe. Lauro comenta isso com traduções precisas: “Representando diversas atividades artesanais, eles também têm nomes escolhidos com intenções satíricas: Bottom (traseiro), o tecelão; Quince (marmeleiro), o carpinteiro; Flute (flauta), o consertador de foles; Snug (atarracado), o marceneiro; Snout (narigão), o funileiro; e Starveling (morto de fome), o alfaiate”. Ele chama ainda a atenção para “a música amorosa mais sensual e comovente de toda a ópera”, que é o dueto de Bottom, enfiado numa caveira de burro, e a rainha Tytania recém-apaixonada por ele por causa do suco mágico que Puck lhe borrifou nas pálpebras enquanto dormia.
A instrumentação é uma verdadeira demonstração do talento inigualável de Britten para a escrita orquestral. A trama mostra três grupos bem distintos – os amantes, os artesãos e as fadas – que interagem entre si. “Usei escritas diferentes e tintas orquestrais específicas para cada grupo”, diz Britten naquela famosa entrevista de 1960 ao Observer. As fadas, por exemplo, são acompanhadas por harpa, celesta, vibrafone, glockenspiel, cravo e percussão. “As fadas são a guarda de Tytania; portanto, alguns trechos são acompanhados por uma música marcial”, explicou Britten. Os quatro amantes recebem um colchão instrumental mais romântico e aveludado, cordas e madeiras; e aos artesãos e seus imbróglios são reservados o fagote e os metais.
Curiosidade; Puck, o personagem que não canta, só recita acompanhado por um tambor e um trompete, foi baseado em meninos acrobatas que Britten viu num teatro em Estocolmo. “Ele é amoral, inocente. Na nossa produção [1960, em Aldeburgh], é interpretado pelo filho de 15 anos de Léonide Massine [célebre coreógrafo dos Ballets Russes de Sergei Diaghilev]. Não canta, limita-se a falar e fazer acrobacias”.
Derradeiro detalhe que transforma esta montagem numa ocasião perfeita para se conferir de perto as habilidades extraordinárias de Britten no trato não só com a música vocal, mas também com o acompanhamento instrumental. “Ela foi pensada”, disse ele em 1960, “para uma sala pequena (…) A orquestra é necessariamente pequena, o que é uma vantagem: dá para trabalhar mais os detalhes e observar mais a disciplina. Os cantores não são forçados a manter um volume vocal uniformemente alto como nas montagens líricas habituais, e portanto podem usar a voz em toda a gama de cores”.
É por tudo isso que Britten é considerado o maior compositor lírico inglês desde Henry Purcell (1659-1695). Desde o sucesso internacional de Peter Grimes (1945), ele declarou que a ópera seria sua “real atividade (…). Sou possivelmente um anacronismo. Sou um compositor de ópera, e é o que vou ser, totalmente”. Outras doze óperas consolidaram sua maestria no gênero. Entre elas, obras-primas como Billy Budd (1951) e The Turn of the Screw (1954). De novo recorro a Lauro Machado Coelho, nosso maior especialista em ópera, autor da monumental história da ópera em mais de uma dezena de volumes parrudos. Ele começa o capítulo sobre Britten no volume A Ópera Inglesa assim: “Se, na ópera do século 20, fosse necessário indicar um pequeno punhado de expoentes realmente grandes, o nome de Edward Benjamin, Lord Britten of Aldeburgh (1913-1976) certamente estaria lá, ao lado de Puccini e Richard Strauss, de Janácek e Alban Berg”.
João Marcos Coelho é jornalista e crítico musical
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